terça-feira, 28 de maio de 2024

Ceará Mirim: Rua Boaventura de Sá da Bodega de Dudu até o Cinema de Chico Uriel


Por Gláucio Tavares Costa

Nos extremos, situavam-se a Bodega de Dudu e o Cinema de Chico Uriel, aquela no lugar mais perto do pôr do sol do logradouro, que acontecia, ao menos de quem ali avistava, no cemitério Santa Águeda, local do fim da rua e sepulcro do sol a cada dia. Estou aqui a escrever sobre a Rua Boaventura de Sá de Ceará-Mirim, lugar do mundo que ligava de uma maneira imediata toda a zona rural do Município de Ceará-Mirim e redondezas à feira da cidade, que naquela época era robusta e acontecia aos sábados e aos domingos.

Os carros do interior rumavam para a feira da cidade, encontrando aconchego e descanso nas ruas laterais da inclinada Praça Monsenhor Celso Cicco, que foi embelezada, por obra do então prefeito Roberto Varela, ao tempo em que a seleção brasileira de futebol foi derrotada pela Itália na Copa do Mundo de 1982 e em cuja parte mais alta do largo dava abertura para a Rua Boaventura de Sá.


A partir do estacionamento das ruas fronteiriças do largo público, onde ficavam enraizados os ônibus da vestuta Empresa Unidos, as pessoas interioranas se juntavam no primeiro ponto de socialização do interior e da cidade: a Bodega de Dudu. Na verdade, a referida mercearia era como uma representação diplomática da zona rural na cidade, em que muitas vezes alguém da zona rural deixava encomendas para outrem residente da urbe receber e vice-versa.

Para se chegar a cidade de Ceará-Mirim ou para voltar ao interior era preciso cumprir uma etapa incontornável: passar no entreposto diplomático: a Bodega de Dudu, nem que fosse tão somente para beber água contida numa caixa de Brasilit, atada em cima de um balcão, que se aliava a um copo de alumínio fixado por uma corrente no desiderato de abeberar os sedentos.

Cabia, entreato, matar a sede pelos auspícios de uma garrafa de refresco, ou ainda, para tantos e tantos, tomar um copo cheio de cachaça, conhaque ou vinho. Nestas últimas opções degustativas, demorava-se mais, tendo como usufruir tempo suficiente para observar a venda de, por exemplo, produtos ligados a cultura da Umbanda, como velas pretas e vermelhas, de todas as demais cores, banhos de pega homem, contra olho gordo, comigo ninguém pode, chora nos meus pés, Iemanjá e Pomba Gira, categorias de instrumentos de proteção divina que também se manifestavam como defumadores, além de patuás, amuletos, cachimbos, bonecos de vudu, azougues e esculturas sagradas.

Não é trivial relembrar que tais objetos cerimoniais da fé advinda do sincretismo religioso euro-africano eram reprovados pela Igreja Católica e pela pequena burguesia da urbe educada no catolicismo. Certamente assim seria aqui na Rua Boaventura de Sá e em outros lugares: a fé não congruente dos outros representa uma ameaça ao conglomerado de fé concorrente no mercado da religiosidade.

Por isso, não raro, alguém adentrava a Bodega de Dudu pela porta mais distante da prateleira das oferendas às divindades da Umbanda e inadvertidamente, como se surpresa fosse, descobria que ali se expunha tais objetos sagrados da cultura africana, perguntando, com suposto falso ar de estranheza, se se vendia e para que serviam os amuletos, velas, banhos e defumadores. Ao final, pesava nas mãos dos acanhados compradores duas ou três sacolas de objetos da Umbanda estrategicamente camufladas para não se revelar a secreta aquisição aos pedestres da Rua Boaventura de Sá.

Muitas outras particularidades interessantes sucederam na Bodega de Dudu. Entretanto, para o texto não transbordar os limites de um conto, vamos agora para a outra extremidade da Rua Boa Ventura de Sá, que é o Cinema de Chico Uriel. Seguiremos.

Todavia, daqui pra lá, digo da Budega de Dudu para o cinema não se pode ir sem passar em uma das primeiras lanchonetes modernas de Ceará-Mirim, a Lanchonete de Benigna, que era irmã de Dudu. Benigna inovou a gastronomia da região com o sanduíche de denominação Americano, merenda volumosa que era carinhosamente confeccionada por Coló, um mulato, oriundo da Praia de Zumbi, que tinha a especial incumbência de fazer sanduíches glamurosos, enquanto Lourdes preparava as vitaminas e Benigna Branca cuidava do atendimento dos fregueses, empreendimento capitaneado por Benigna Preta com aptidão de concentrar toda sociedade cearamirinense na noite do domingo, após o encerramento da Santa Missa.

Seguindo a calçada, passamos na Loja de Zé da Fácil, que vendia rações, utensílios e máquinas agrícolas, comércio que se limitava adiante pela Vila Rica, mais conhecida por Vila de Tudo Rico, que entre tantos inquilinos, abrigava viajantes e uma benzedeira… Do lado oposto da Rua Boaventura de Sá ficava a casa de Dona Lucimar, que juntamente com as ruínas de uma antiga delegacia, atualmente demolida, abriam alas para uma ladeira: a Rua da Cruz.

Voltemos ao passeio pela Rua Boaventura de Sá. Depois da Vila de Tudo Rico, encontravam-se algumas casas, a Berberia de Manu, a Sapataria de Chico Bento, que dispunha na porta de entrada de uma lista de devedores, uns passos a mais, chegava-se a Loja de Nanal de equipamentos eletro-eletrônicos, que trouxe inovações como videogames Atari e videocassestes, alcançando-se, por fim, a casa da sétima arte.

Hoje é uma farmácia, naquela época era um cinema, em cuja calçada sempre estava a disposição o adorável e saboroso cachorro quente do Tinôco, que aceitava inclusive vender só o recheio se o cliente comprasse o pão na Padaria de Miguel Paiva, localizada na esquina do outro lado da rua. Havia por ali, naquele tempo, uma laranja, que tinha a casca subtraída por uma geringonça giratória, que a deixava pronta para entrar no cinema e ser saboreada enquanto se assistia o filme, que derivava da arte, da película de celulose e do carvão colocado por Lula na máquina projetora cinematrográfica, que se assentava no pavimento superior do prédio do cinema, arrodeada de cadeiras reclináveis de madeira.

O fim ou começo da Rua Boaventura de Sá era onde se transmitiu os filmes de Teixeirinha, Rambo, Bradock, Fuscão Preto com Xuxa, além de inúmeras pornochanchadas. O amplo salão tornava-se diminuto para o público quando da estreia de filmes como Rambo, que atraia tanta gente, que além de preencher as quase trezentas cadeiras enfileiradas no térreo e primeiro andar do prédio, deixava muita gente assistir a película de pé, apesar da concorrência do Cinema Paroquial, administrado por Lúcio Som, que era encravado na parte debaixo da cidade, nas proximidades dos Correios.

A Rua Boaventura de Sá, além da missão de globalizar o rural e o urbano, teve de um lado, esse brilho da arte cinematográfica e doutro, recanto da religiosidade subversiva na Budega de Dudu.

*É Assessor Jurídico do TJRN, mestrando em Direito pela Universidad Europea del Atlántico, graduado em Farmácia pela UFRN e morou por anos na Rua Boaventura de Sá de Ceará-Mirim/RN.



VIZOOM JOÃO CÂMARA

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