
Os episódios lamentáveis do dia 8 de janeiro, que depredaram os prédios das sedes dos Três Poderes da
República, em Brasília, expressaram a violência física, abjeta e covarde de uma turba que atentou contra
a democracia brasileira. Porém, há outras formas de violência contra o regime democrático, o estado de
direito, a harmonia entre os poderes e o pacto federativo. E uma delas é o descumprimento das leis,
sobretudo por autoridades públicas.
Recentes manifestações de entidades municipalistas contra a Portaria MEC nº 17/2023, que atualizou o
piso do magistério de 2023 em 14,95%, remontam a estratégia e os argumentos infundados desses
mesmos atores por ocasião da publicação da Portaria MEC nº 67, que atualizou o piso em 2022. E essas
posições atentam contra os valores democráticos da República, especialmente pelas razões que seguem:
1. A Confederação Nacional dos Municípios - CNM, uma das entidades que promovem os ataques
contra o art. 5º da Lei 11.738, e que passou a orientar uma ofensiva judicial de Municípios nas
varas da Justiça Federal em todo Brasil, obtendo vitórias parciais e derrotas - quase todas
pendentes de confirmação pelos TRFs ou Tribunais Superiores -, optou, ainda em 2022, por
criminalizar o movimento sindical ao mover ação por crimes de calúnia, injúria e difamação
contra a Diretoria Executiva da CNTE. O motivo da ação consiste na manifestação contundente
da CNTE contra o pseudoargumento da CNM de que o critério de atualização do piso havia
expirado e que não poderia ser regulado pelo MEC, sem que houvesse, à época, qualquer decisão
judicial que amparasse, ainda que cautelarmente, tal pretensão da Entidade. O referido processo
continua pendente no 2º Juizado Especial Criminal de Brasília.
2. Neste exato momento, não existe nenhuma decisão definitiva (transitada em julgado) que
sustente os argumentos de não aplicação integral da Lei 11.738, sobretudo em relação ao critério
de atualização amparado em pareceres e portarias do Ministério da Educação. Há, apenas,
decisões incidentais preliminares, de abrangência individual ou por microrregiões (sem efeito
abstrato e coletivo), seja a favor ou contra a aplicação do critério de atualização do piso. E isso
mantém a validade da Lei em todos os locais não contemplados por eventuais decisões adversas
à Portaria MEC nº 67/2022 (ou mesmo à Portaria MEC 17/2023).
3. As decisões judiciais favoráveis à vigência do critério de atualização do piso, previsto no art. 5º
da Lei 11.738, se pautam em grande parte no acórdão da ADI 4848, do Supremo Tribunal
Federal, que julgou constitucional a atualização do piso do magistério. E essa decisão do
plenário do STF tem dois aspectos centrais: i) ocorreu em 01/03/2021, portanto, na vigência da
Emenda Constitucional nº 108 e da Lei 14.113, que alteraram a EC 53 e a Lei 11.494,
respectivamente. Isso, por si só, caracteriza a plena vigência do art. 5º da Lei 11.738, uma vez
que a jurisprudência do STF não permite realizar controle de constitucionalidade sobre
norma legal revogada ou que tenha exaurido sua vigência1
; e ii) considerou autônomos tanto a Lei 11.738 como seu critério de atualização do piso, sem que esse último ferisse o principio
da legalidade. Ademais, o referido acórdão responde a muitos ataques lançados pelas entidades
municipalistas contra o critério de atualização do piso, conforme destacado na sentença do Juiz
Federal Dr. Oscar Valente Cardoso, da 1ª Vara Federal de Capão da Canoa-RS, parcialmente
transcrita a seguir:
(...) No julgamento da ADI 4848, o STF declarou a constitucionalidade do art. 5º,
parágrafo único, da Lei nº 11.738/2008, e, consequentemente, da atualização anual por
meio de Portaria do MEC, diante da ausência de reserva legal. Conforme a ementa do
acórdão: (...)
3. A previsão de mecanismos de atualização é uma consequência direta
da existência do próprio piso. A edição de atos normativos pelo Ministério da
Educação, nacionalmente aplicáveis, objetiva uniformizar a atualização do piso
nacional do magistério em todos os níveis federativos e cumprir os objetivos previstos
no art. 3º, III, da Constituição Federal. Ausência de violação aos princípios da
separação do Poderes e da legalidade. (...) 5. Ausente violação ao art. 37, XIII, da
Constituição. A União, por meio da Lei 11.738/2008, prevê uma política pública
essencial ao Estado Democrático de Direito, com a previsão de parâmetros
remuneratórios mínimos que valorizem o profissional do magistério na educação
básica. 6. Pedido na Ação Direita de Inconstitucionalidade julgado improcedente, com
a fixação da seguinte tese: 'É constitucional a norma federal que prevê a forma de
atualização do piso nacional do magistério da educação básica'” (ADI 4848/DF,
Pleno, rel. Min. Roberto Barroso, j. 01/03/2021, DJe 05/05/2021).”
4. Outro apontamento importante no acórdão do STF, e que desmonta o argumento dos gestores
municipais sobre eventuais impactos financeiros nas contas públicas, se refere à possibilidade de
a União repassar recursos aos entes federados que comprovarem incapacidade para honrar o
pagamento do piso do magistério. Esse dispositivo, constante no art. 4º da Lei 11.738, encontrase assim disposto no acórdão da ADI 4848:
“A Lei nº 11.738/2008 prevê complementação pela União de recursos aos entes
federativos que não tenham disponibilidade orçamentária para cumprir os valores
referentes ao piso nacional. Compatibilidade com os princípios orçamentários da
Constituição e ausência de ingerência federal indevida nas finanças dos Estados”.
5. Corrobora, ainda, a plenitude de vigência da Lei 11.738, o fato de em 17/08/2021 - ou seja, na
transcorrência da EC 108 e da Lei 14.113, relativas ao FUNDEB permanente - a Câmara dos
Deputados ter votado o recurso (REC) nº 108/2011, com vistas a concluir a tramitação do PL
3.776/08, sem necessidade de apreciação do mérito da matéria pelo plenário da Casa. O projeto
em questão, protocolado em 2008, dispõe sobre a alteração do art. 5º da Lei 11.738. As entidades
municipalistas se posicionaram pela aprovação do recurso, que levaria para sanção presidencial o
novo critério de revisão do piso - atrelado unicamente ao INPC - e a CNTE e seus sindicatos
filiados se manifestaram contrários à proposta. O placar da votação foi 225 pela manutenção do
recurso contra 222 pela rejeição do mesmo. Com isso, permaneceu vigente a redação original do
art. 5º da Lei 11.738, que vincula a atualização do piso ao crescimento do custo per capita do
FUNDEB, referente aos anos iniciais do ensino fundamental urbano (idêntico ao definido na EC
53 e na Lei 11.494. Vide o posicionamento das Comissões de Educação e de Cultura da Câmara
dos Deputados e das Frentes Parlamentares em Defesa da Educação no Congresso Nacional2
acerca da vigência do art. 5º da Lei 11.738).
6. Após a consumação do REC 108/2011 na Câmara dos Deputados, a CNM e outras entidades
municipalistas iniciaram uma articulação com o antigo governo federal, sobretudo com o então
ministro da Economia, Paulo Guedes, para desacreditar a vigência do art. 5º da Lei 11.738, buscando, assim, forçar a aprovação de outro referencial para atualizar o piso do magistério.
Naquele momento, chegou-se a cogitar publicamente a edição de Medida Provisória (MP) para
fixar o INPC como fator de reajuste, mas o governo, de última hora, refugou e acabou seguindo a
determinação legal, gerando descontentamento nas representações municipais, que passaram a
agir por conta própria contra a lei do piso do magistério.
7. Entre as idas e vindas do Governo Bolsonaro para alterar o critério de atualização do piso do
magistério, a Secretaria de Educação Básica - SEB/MEC, em caráter preliminar, aprovou parecer
favorável à alteração do art. 5º da Lei 11.738, tanto por MP como por projeto de lei, sob o
pretenso argumento de que o dispositivo da referida Lei teria expirado - o que está incorreto,
conforme demonstrado acima. Após o governo mudar a posição sobre a edição de Medida
Provisória, a SEB/MEC refez seu parecer sobre a atualização do piso, mantendo o critério do art.
5º da Lei 11.738, porém, em caráter excepcional, até que o Congresso Nacional suprisse pretensa
“lacuna legislativa”. E, embora a motivação do parecer contenha incongruência, sua
fundamentação está amplamente amparada no acórdão da ADI 4848/STF, pois compete ao MEC
“normatizar e uniformizar” a aplicação do piso em todo país, dando consecução à política de
valorização dos profissionais da educação prevista no art. 206, V e VIII da Constituição, na meta
17 da Lei 13.005 (Plano Nacional de Educação) e na própria lei do piso, observadas as
determinações contidas na ADI 4848/STF.
8. Neste momento em que o MEC publica a Portaria nº 17/2023, anunciando o valor do piso do
magistério no valor de R$ 4.420,55, seguindo o critério definido no art. 5º da Lei 11.738,
novamente se verifica incoerência na interpretação ministerial sobre a vigência da norma do
Piso, fato que, no entanto, só diz respeito à motivação do parecer. Em relação à sua finalidade,
objetivos e constitucionalidade, o ato está pertinentemente salvaguardado pelo art. 87, parágrafo
único, II da Constituição, pelo acórdão da ADI 4.848/STF e pela própria Lei do Piso.
Diante do exposto, a CNTE reitera sua orientação aos sindicatos filiados e às demais entidades que
representam os servidores do magistério público da educação básica no país para que exijam o efetivo
cumprimento do piso salarial nacional do magistério, no valor de R$ 4.420,55, em 2023.
Também requer ao Ministério da Educação (diferente do que ocorreu na gestão anterior) uma resposta
imediata aos ataques descabidos e sem base legal das entidades municipalistas que anunciam BOICOTE
à aplicação do piso do magistério. O MEC e a Advocacia Geral da União devem tomar todas as
providências cabíveis para garantir o cumprimento da legislação federal e, consequentemente, o respeito
ao Estado Democrático de Direito.
A título de resgate histórico, é pertinente frisar que a primeira lei de piso nacional do magistério foi
criada em 15 de outubro de 1827 - data em que se comemora o dia do/a professor/a no Brasil -, mas sua
vigência foi inviabilizada pelas Províncias sob a alegação de falta de recursos para honrar o
compromisso com o magistério. Agora, quase 200 anos depois, os gestores municipais, precedidos de
governadores que ingressaram inocuamente com a ADI 4848 no STF, tentam uma vez mais pôr fim a
uma conquista das mais importantes para a sociedade brasileira. E sempre é bom lembrar que não
haverá educação de qualidade, inclusão social e desenvolvimento sustentável sem profissionais da
educação valorizados.
Por isso, lutamos pelo cumprimento integral do piso do magistério, com atividade extraclasse mínima de
1/3 (um terço) da jornada de trabalho dos/as professores/as e com valorização de suas carreiras
profissionais!
Brasília, 19 de janeiro de 2023
Diretoria da CNTE.